O tamanho do Brasil que põe a mesa

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Cerca de 30% do território já foi ocupado por lavouras e criações. Mas ainda restam
106 milhões de hectares, uma das maiores reservas de terras agrícolas do planeta


Alexandre Secco

Nos últimos dias, o agrônomo americano Norman Borlaug, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1970, esteve no Brasil para conhecer a agricultura que se faz no país. Aos 90 anos, ele ainda é uma das vozes mais respeitadas no campo do desenvolvimento agrícola. Graças a suas pesquisas, grandes extensões de terras em todo o mundo antes consideradas impróprias para o cultivo foram transformadas em regiões produtoras, livrando centenas de milhões de pessoas da fome, principalmente na Ásia. Agora, com suas descobertas disseminadas, ele acha que caberá ao Brasil o papel de maior destaque na agricultura mundial nos próximos anos. A principal razão: o país tem a maior reserva de terras agricultáveis ainda disponível no planeta. O maior produtor de alimentos do mundo hoje, os Estados Unidos, não consegue ampliar sua produção porque a tecnologia existente já foi incorporada e não há novas fronteiras para plantar. Na Europa, as áreas agrícolas também já estão completamente ocupadas. Índia, Rússia e Canadá, outros três países com grandes extensões de terra, enfrentam severas limitações climáticas e geográficas para ampliar a produção. A China, sempre a China, tem 10% de toda a área agrícola do mundo e um grande potencial para se desenvolver, porém enfrenta duas barreiras. Primeiro, precisa alimentar 20% da população mundial. Segundo, tem de fazer um investimento pesado para preparar o solo para produzir. Resta o Brasil, o único do mundo com largas extensões de terras para plantio já mapeadas e disponíveis para uso imediato.

Com a ajuda de técnicos do Ministério da Agricultura e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), VEJA produziu uma série de mapas que ilustram como o território brasileiro de 851 milhões de hectares é utilizado. O mapa foi dividido em dois blocos. No menor deles, que ocupa 33% do território, ou 282 milhões de hectares, localiza-se o que se pode chamar de o Brasil rural. Aproximadamente 220 milhões de hectares são usados para pastagem e criação de animais. Nessa área, vive um dos maiores rebanhos bovinos do mundo, formado por 170 milhões de cabeças. Em uma porção relativamente pequena, de 40 milhões de hectares, que corresponde a apenas 5% de todo o território, é que se realiza o grosso da atividade agrícola. É dessa porção de terra que o Brasil extrai mais de 120 milhões de toneladas de grãos. Em outros 20 milhões de hectares produz cana-de-açúcar, laranja e demais culturas permanentes.
 



Na outra metade do mapa, de quase 70% da área total do país, ou 569 milhões de hectares, não há atividades agropecuárias. Parte desse território está ocupada pela Floresta Amazônica, por reservas florestais e indígenas, centros urbanos, estradas, represas e rios. Existe também outra parcela onde ainda não se realiza nada que pode imediatamente ser incorporado ao mapa do Brasil que produz. Trata-se de uma área de 106 milhões de hectares de terras férteis, praticamente toda localizada na região do cerrado. É para esse pedaço de terra que os países olham quando se pensa em quem poderá alimentar o mundo nos próximos anos.

Poucas pessoas têm familiaridade com o que representa uma área desse tamanho. Algumas comparações ajudam a perceber sua dimensão. Toda a produção de grãos dos Estados Unidos, a maior do planeta, ocupa 140 milhões de hectares. Ou seja, o Brasil ainda pode agregar uma área agrícola praticamente igual à dos EUA a seu mapa agrícola. Segundo os pesquisadores, o Brasil tem uma vantagem adicional nessa conta: com áreas agrícolas semelhantes, os Estados Unidos precisam alimentar 290 milhões de pessoas; já o Brasil, só 175 milhões. O efeito dessa diferença é que o país poderá produzir excedentes para exportação em maior quantidade. Outra vantagem é que, além de ter terra abundante, o Brasil do campo vem recebendo injeções intensivas de capital e de conhecimento científico aplicado. Os cientistas brasileiros conseguiram corrigir as deficiências nutricionais do solo e, quando isso não foi suficiente, modificar geneticamente as plantas para suportarem condições adversas. Técnicos do governo dos EUA visitaram o Brasil para levantar as próprias estatísticas sobre o assunto. O resultado foi a divulgação de um estudo, em que o país é reconhecido como uma potência agrícola emergente. "A principal observação sobre a viagem é que o Brasil possui enorme potencial e que as estimativas estavam grosseiramente subestimadas", diz Michael Shean, o técnico americano que assina o trabalho.

O impacto decorrente da incorporação de todas as áreas agrícolas disponíveis na economia brasileira ainda não está claro, mas as apostas são altas. Além de ter largas extensões de terras virgens onde extrair alimentos, pode-se tirar muito mais da que já está sendo usada. Isso se deve ao fato de que, apesar de todo o avanço, o uso de tecnologia ainda é relativamente baixo na lavoura quando comparado ao cenário dos países desenvolvidos. Uma mudança nesse quadro possibilitaria ganhos expressivos para o país. Hoje, ocupando uma área agrícola relativamente pequena, o Brasil já é uma potência mundial do campo. Temos o maior rebanho comercial bovino, a maior produção de laranja e de café, a segunda maior produção de soja e a terceira de milho. Segundo previsões recentes, a safra brasileira de soja nos próximos anos deve ultrapassar a dos americanos, colocando o país na posição de líder mundial.



Depois de um longo período de estagnação na década de 80, a safra de grãos no Brasil voltou a bater recordes seguidos. Na última, a colheita atingiu 120 milhões de toneladas e, para a próxima, a estimativa é de 130 milhões de toneladas. Os números mostram que o campo, de patinho feio da economia, se transformou em seu setor mais dinâmico. Anualmente, o comércio de produtos agrícolas com outros países deixa um saldo positivo de 23 bilhões de dólares para o Brasil. Como gosta de lembrar o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, a agricultura moderna é a base de uma cadeia econômica altamente diversificada.

Ela movimenta desde a venda de sementes até a indústria de computadores e programas. Segundo o IBGE, o agronegócio já representa 30% do PIB e gera quase 40% dos empregos. Manter esse trem nos trilhos depende de encontrar soluções para uma série de problemas. A competição dos países ricos é feroz. Nos Estados Unidos e na Europa, o governo gasta centenas de bilhões de dólares em subsídios anuais aos produtores rurais, e vários produtos brasileiros são fortemente taxados no exterior. Nas rodadas de negociação internacional, não surgiu ainda uma solução para esse impasse.

Mais do que isso, o Brasil precisa superar problemas no front interno. As estradas usadas para escoamento da produção são precárias, os portos são pouco eficientes e, para muitos, a legislação ambiental é severa demais. Outro entrave está ligado à propriedade da terra, razão de grandes conflitos no país. No passado, a terra representava 90% do investimento necessário para um empreendimento agrícola. Por causa disso, vários países adotaram programas de reforma agrária para descentralizar a posse da terra e estimular a produção. Atualmente, a equação mudou. A terra representa 10% do investimento. Na lavoura, o que faz a diferença são as máquinas, a irrigação, o adubo e os defensivos agrícolas. Nesse novo cenário, muitos acreditam que a reforma agrária perdeu a razão de existir. Com a crescente mecanização do campo, em que um único agricultor produz alimentos necessários para alimentar 1 000 pessoas, a reforma agrária de fundo apenas social perdeu o papel apaziguador do passado. Para muitos analistas, ela serve atualmente apenas para distribuir a pobreza. No Brasil, até agora, apesar de investimentos elevadíssimos na reforma agrária, os resultados não são animadores nem no campo social nem no campo econômico. Nos últimos trinta anos, 600.000 famílias foram assentadas em uma área que, somada, chega a 30 milhões de hectares -- quase igual a toda a terra usada na produção de grãos. Esse programa consumiu 24 bilhões de reais, e, na maioria dos assentamentos, as famílias ainda não conseguiram superar o estágio da agricultura de subsistência.

Apesar de os indicadores serem desfavoráveis, o governo Lula mantém entre suas prioridades um programa de distribuição de lotes para famílias de sem-terra. Um de seus argumentos é que ainda há muitos latifúndios improdutivos, que seriam mais bem aproveitados se fossem distribuídos a famílias de sem-terra. De fato, os números mostram que no Brasil ainda existem grandes fazendas que não estão produzindo nada. O detalhe é que a maioria dessas propriedades se encontra localizada na Amazônia e nas regiões mais inóspitas do Nordeste, onde é inviável praticar a agricultura. Em regiões de clima e solo propícios, o latifúndio praticamente acabou. Até mesmo o Incra vem encontrando dificuldade para localizar terras para desapropriar. "Terra parada é prejuízo, terra produzindo é lucro. Quem é louco de não produzir?", diz o presidente da Sociedade Rural Brasileira, João de Almeida Sampaio. A ideologização da questão torna uma solução para o problema difícil de ser alcançada. Historicamente, a esquerda insurrecional vê na distribuição de terra uma forma de luta política que é travestida em resgate da dívida social com os mais pobres. Os aspectos econômicos da questão sempre foram deixados de lado.

Há outro grave problema, este associado ao uso da tecnologia. Entre os grandes produtores de alimentos do mundo, o Brasil é o único que ainda não resolveu a questão dos transgênicos. Recentemente, a Câmara aprovou uma lei sobre os procedimentos que vão reger a pesquisa e a comercialização dos alimentos transgênicos. Segundo o que foi aprovado, um conselho formado por quinze políticos terá a responsabilidade de aprovar os transgênicos que poderão ser vendidos. Na prática, transfere para o campo político uma decisão que deveria ser técnica. Outro sinal que preocupa diz respeito às propostas do governo para a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Considerada um centro de pesquisa de primeira linha no mundo inteiro, é uma das grandes responsáveis pelo alto grau de desenvolvimento da agricultura brasileira hoje. Mas, apesar de seu sucesso, alguns setores do governo defendem que a Embrapa deve mudar seu foco, passando a dar atenção prioritária aos pequenos proprietários. Guardadas as devidas proporções, é como o governo americano desviar a Nasa de suas missões espaciais para focar seu potencial tecnológico no atendimento às enchentes do Rio Mississippi.

Eis outro problema. Nos países de agricultura desenvolvida, as pequenas propriedades rurais e as grandes fazendas são complementares. As grandes fazendas mecanizadas garantem uma parcela importante da comida que é consumida nos centros urbanos. As pequenas propriedades estão voltadas para o abastecimento das regiões onde estão situadas, normalmente no interior. No Brasil, ainda se discute se esses dois tipos de empreendimento podem coexistir. O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra é o principal defensor da corrente que deseja abolir as grandes fazendas. Se o governo se render à mesma e tosca idéia, o Brasil pode perder sua hoje única fonte segura de dólares e progresso.